sexta-feira, 29 de junho de 2012

Palestina, um ano depois




Há exatamente um ano, nesse mesmo dia (29 de junho), eu chegava na Palestina. Não era a primeira vez que visitava aquele país, mas era a primeira em que moraria nele. Não só isso, era também a primeira vez em que moraria fora de meu país, ainda por cima trabalhando com algo que nunca trabalhei diretamente. Por outro lado, a situação não me era estranha, muito pelo contrário, era muito familiar, já que há vários anos estudava o assunto e tinha feito uma viagem anteriormente na qual pude conviver e ser hóspede de famílias palestinas. Fui com muitas expectativas e em muitos sentidos elas foram superadas, em alguns poucos aspectos, ficaram abaixo delas. A experiência foi ao mesmo tempo muito intensa e envolvente, ao ponto de em certa maneira me sentir em casa. A imersão naquela realidade foi tão profunda e tanto a situação, quanto ao trabalho que realizava, tornava todo o universo que me era familiar, toda minha vida anterior, algo estranho, de alguma maneira alheia a mim, como se pertencesse a outro período ou a outra vida. No entanto, não quer dizer que não estivesse ausente de mim, pois eram provavelmente as minhas angústias com essa existência que agora sentia como uma "outra vida" juntamente com os imperativos de minha missão lá dado a situação que tornavam a nova realidade em certo sentido reconfortante. Diante do que via e do que precisava fazer, as dores do passado pareciam em minha consciência como pequenos infortúnios distantes de mim, como se os tivesse vivido em minha infância e considerasse-as hoje tolices, mas não deixaram subconscientemente de existir, por vezes conscientemente, e de me afetar, tanto em minhas ações, quanto em meus sentimentos. Assim, me via quase livre de outras preocupações que não condizessem ou se interrelacionassem com aquela nova vida. Vivi quase num estado de suspensão, por assim dizer, o que tornou o retorno um certo choque, sobretudo, devido a intensidade daquele três meses, daquela dura situação, de uma realidade muito além do que é possível imaginar para aqueles de fora. O retorno não trazia só lembranças, mas vínculo perene com aquela realidade que mesmo estando distante, mesmo não estando fisicamente a meu redor, vivia em mim, como ainda vive de fato com meus amigos e outros tantos palestinos que conheci lá. Havia ao mesmo tempo em mim uma ânsia de contar tudo, mas uma angústia que me levava ao silêncio. Apesar de saber há anos disso, não deixava de ficar pasmo como tantas injustiças podem ser escondidas, mas pior, o maior absurdo talvez seja exatamente a vilificação da vítima, não somente sua culpabilização por seu próprio sofrimento, mas a própria condenação a priori de um povo inteiro como "potencial genocida", como uma ameaça a vida de outro povo, cujo o Estado que os diz representar é de fato o causador direto de um sofrimento generalizado há mais de 60 anos para aquele povo julgado como agressor, mesmo em condições de extrema inferiodade econômica, militar, política, ideológica, etc. Enfim, uma desumanização completa do povo palestino, e vista não só como aceitável, mas como necessária. Diante de tal paradigma, tão presente em nossa mídia, tão bombardeada em nossos cérebros pelos mais diversos meios de comunicação quase diariamente, mas negligenciado pelas pessoas ocupadas em seus afazeres cotidianos, como tornar o que vivi minimamente compreensível aos outros, o que para mim não advinha somente do desejo de compartilhar, mas era (e é ainda) um imperativo. Mas como fazê-los entender? Mais ainda, como expôr compreensivelmente essa situação a tantos que sequer se interessarem minimamente por ela? E como fazer aqueles que mais precisam saber disso livrarem-se de seus enraizados preconceitos?

Vista para o antigo mercado de carne de Hebron, o qual os palestinos estão proibidos de acessar desde 1994 e que foi parcialmente demolido pelos colonos do assentamento de Avraham Avinu

A experiência de viver na Palestina como um acompanhante ecumênico é, pode-se dizer, como uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo, você conhece lugares incríveis; pessoas maravilhosas, fantáticas e admiráveis; ganha experiência tanto profissional quanto de vida; desenvolve antigas habilidades e adquire novas; etc. Por outro lado, a dura realidade da Palestina não é facilmente digerível, mesmo para os mais acostumados. Às vezes, pode haver um certo distanciamento, uma sensação de imunidade, como você estivesse apenas presenciando (ou até assistindo como num documentário) algo do qual você sabe não sofrerá. Mas o cursos das coisas nessa terra castigada pelo homem não tarda a mudar essa percepção. Cedo ou tarde, ela alcança a grande maioria diretamente ou indiretamente. Pode ser uma agressão testemunhada ou sofrida, uma humilhação aviltante vista ou vivida, de qualquer modo, vive-se não só pelas palavras dos palestinos os sofrimentos e angústias pelas quais esses passam e sentem, mas na própria pele, ainda que incontavelmente diluída e por mais incomparável que pareça a equivalência racionalmente. Não há como ficar totalemnte apático perante tamanhas injustiças cometidas em frente aos nossos olhos caso se possua o mínimo de empatia com a dor de outro ser humano. Vê-se coisas para qual a descrição exije um esforço de contextualizar um absurdo dentro de um absurdo maior, que torna anedotal o fato mostrado por si só. Haver uma razão para certas coisas é às vezes o que a torna mais insólita na Palestina. Demolições de casas e outras construções, não são apenas demolições injustas e quase sem propóstio a primeira vista. É evidente que muitas vezes o Estado de Israel gasta muito mais em logística (combustível, pessoal, "segurança") para demolir uma tenda de um beduíno no meio do deserto, do que esse gastou para construí-la (em termos totais, não proporcionais, é claro). O que explica tal aparente incoerência e a estratégia maior de controle sobre um território, de limpeza étnica de uma população em nome de um princípio etnocêntrico de Estado, uma verdadeira etnocracia. Para aquele que observa isso conhecendo e vivendo o contexto maior, há uma dificuldade enorme no simples relato de uma experiência pontual como essa. E há algo ainda pior, muitas tornam-se de certa forma banais. Os absurdos começam ganhar uma escala, e pouco se impressiona com algumas injustiças do cotidiano enquanto tem-se que vivê-las e registrá-las o tempo todo. Um posto de controle no meio do nada, sem água, sem banheiros e sem locais para abrigar os trabalhadores que esperam em filas enormes para ir a Israel ou mesmo a Jerusalém oriental (segundo a lei internacional, parte integral de um futuro Estado Palestino e sua capital), deixa de ter o mesmo impacto ao observador a medida que vê-se outros tantas injustiças com o passar dos dias, como pessoas desesperadas a se esmagarem para atravessar o posto de controle e chegar a tempo em Israel para não perder o dia de trabalho; a serem humilhadas e tratas como seres desumanos pelos soldados ou seguranças privados que cuidam da segurança e do "processamento" da travessia, entre outras coisas. Acontece, como com os palestinos, que acaba-se por se disciplinar-se perante os fatos, como é a estratégia padrão da ocupação israelense. Entretanto, a inconformidade não desaparece, nem deixa de estar presente subconscientemente. Ela fica num estado de suspensão como um modo de conter a indignação perante esses fatos para que se possa realizar um trabalho maior. Esse autocontrole, por outro lado, é esforço tremendamente maior para quem o viveu durante toda sua vida, para quem sofre humilhações cotidianas desde a tenra infância, sobretudo para jovens alijados de seus sonhos e tendo que perdurar sem esperança. Não há para esses quase nenhum refúgio, tendo ainda por cima que lidar com brutal repressão a qualquer expressão de sua raiva, por menor que seja. O conjunto dessa opressão é o fermento para as agressões mais violentas que se conhece da resistência palestina, como o homem-bomba, que são também as mais conhecidas e divulgadas pela mídia, mas raríssimamente o que as origninam. Há 45 anos Israel ocupa os territórios da Cisjordânia e Faixa de Gaza, mas essa estratégia que veio a "caracterizar o conflito" segundo a mídia ocidental não tem sequer 20 anos e ceifou durante esse tempo menos vida do que as bombas lançadas pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) apenas em Gaza no início de 2009.


Casa de um palestino demolida por estar numa área próxima a um assentamento (Kiryat Arba, ao fundo)

De minha experiência pessoal, é difícil enumerar as injutiças das quais presenciei ou ouvi relatos de primeirma mão. É difícil para qualquer um mesmo que passe apenas uma semana na Cisjordânia. Não testemunhei algumas das mais brutais, como assassinatos seletivos (que hoje ocorrem mais em Gaza), nem demolições de casa. As últimas aconteceram enquanto estive lá, mas pude ver apenas os vestígios, quando muito. Frequentemente, ocorrem demolições na madrugada, para impedir qualquer registro, quando o exército não barra o acesso para o local. Ao passar pelos escombros várias casas e construções demolidas em várias cidades e vilas da Palestina, surgia em mim uma vontade um tanto sádica de querer ter assistido a esses eventos, de ver essas demolições, de experienciá-las, como com outras tantas injustiças. Por mais insólito que isso pareça, há uma racionalidade fria em presenciar tudo isso e registrar em primeira mão. Poder mostrar em imagens ou poder descrever em detalhes toda e cada injustiça torna-se um imperativo, algo que é desprazero de fazer, mas instrumentaliza aquele que quer divulgá-la, já que dificilmente pode fazer alguma coisa in loco para modificá-la ou, ainda mais difícil, impedí-la. Esse sentimento de impontência torna a presença e a observação algo de alguma forma reconfortante, mesmo que um tanto ilusoriamente. Como é uma das únicas coisas que se pode fazer, especialmente no meu caso, como imagino de outros, acaba-se por buscar incessantemente essas evidências, que por si mesmas trazem um risco, tanto psicológico, quanto por vezes físico. Embora o físico seja um tanto mais incomum para observadores internacionais, o psicológico não é. De alguma maneira, a superexposição pode às vezes ser danosa para os objetivos, tornando dificilmente separar emoções do puro e simples testemunho frio. Afinal, quando, por exemplo, crianças que você vê diramente ou mesmo conhece são humilhadas ou agredidas, o vínculo emocional com o fato pode tornar-se uma fraqueza a ser explorada pela cínica estratégia de argumentação reproduzida quase da mesma forma por todo um exército de apologistas de Israel: "Afinal, não são meramente crianças, são potenciais terroristas, alimentados por propaganda e ódio antissemita desde sua infância". Dessa forma, o agressor não só justifica seus atos, mas ele se torna a potencial vítima que agiu em legítima defesa, não só isso, estava fazendo a justiça de um crime que não aconteceu, mas que poderia potencialmente acontecer. O racismo implícito nessa argumentação consegue ser passar sem ser notado pela maior parte do público já indoutrinado em islamofobia pela grande mídia. A naturalização de um crime contra qualquer outro grupo leva frequemente a acusação de racismo, menos nesses casos, onde ainda por cima é o racista e agressor que se vê ao mesmo tempo como vítima de agressão e racismo. Defender a igualdade de todos seres humanos e seus direitos é uma coisa, outra é defender um conhecido desumanizado dessa forma, descaracterizado e deturpado por um estereótipo que se aplica a ele independente de suas ações e pensamentos. Não importa que ele seja um pacifista, não importa que ele nunca tenha pego em uma arma, importa menos ainda que ele jamais tenha recebido essa fantasiosa educação do "ódio" (contra judeus, mais especificamente) que nunca testemunhei por mais dezenas de crianças que conhecesse na Cisjordânia; nada disso importa, a questão é que ele é um palestino antes de tudo, e "palestinos são terroristas".

Soldado israelense aponta sua arma para um menino palestino em Hebron


Sair de uma realidade na qual se testemunha cotidianamente essas injustiças, para uma na qual elas são justificadas peremptoriamente ao mesmo tempo que são ignoradas, quando não desconhecidas, é no mínimo angustiamente, ainda mais considerando a intensidade da experiência lá e o vínculo que se manteve com ela. Para mim, o fato de logo que sair, ainda na época do dia das crianças, foi especialmente duro ter de testemunhar à distância a agressão  por soldados israelenses dos alunos da escola Córdoba, os quais acompanhava diariamente, quando houve um protesto contra a obrigatoriedade dos professores dessa escola de serem escaneados diariamente em detectores de metal ao entrar na área de controle israelense. Especialmente problemático foi o retorno a vida de antes e as preocupações que tinha deixado de lado em conjunto com as novas angústias. Houve nos primeiros momentos quase uma espécie de negação do retorno, como se contuasse lá, embora em corpo aqui. Pouca preocupação foi dada ao que havia "ficado em suspensão" inicialmente, pois em minha mente continuavam "em suspensão". Queria que continuasse pois manifestava abertamente o desejo do voltar, por mais difícil e até contraproducente que fosse. A mídia social permitiu a manutenção desse vínculo, ao mesmo tempo facilitando e dificultando o afastamento, o retorno a vida anterior. Por um lado, podia as pessoas não estavam totalmente separadas, de modo que a angústia causada pelo distanciamento se atenuava. Por outro, os laços com uma realidade em tribulação fazia com que ainda sentisse a indignação perante essas injustiças sem poder ter o reconforto de registro e/ou da presença protetiva,  um dos pilares centrais do Programa Ecumênico de Acompanhamento na Palestina e Israel. Mas o tempo passou, os afazeres cotidianos foram ganhando prioridade e aquela vivência por três meses na Palestina e em Israel tornou-se passado, por mais presente que fossem as lembranças. Ao mesmo tempo senti que passei um significativo período de minha vida lá e que o tempo passou muito rápido. A sensação é de que vivi anos lá, mas ao mesmo tempo tudo passou tão rápido. As lembranças se assemelham as das cidades que morei por vários anos há um bom tempo atrás. De fato, em termos de experiência, foi quase tanto em três meses do que durante vários anos de minha vida em alguns lugares. Talvez seja a profundidade e a dimensão dessa experiência que traga essa sensação estranha em relação ao curto período passado lá, que ao mesmo tempo parece tão longo por tantas coisas acontecerem, por tantas coisas serem conhecidas. Esse é o impacto da vivência como um observador e acompanhante estrangeiro na Palestina por três meses: a de uma realidade tão complexa e tão estupefante que ocupa em termos de significância uma boa parte de nossa vida por mais curto que seja o tempo.