Passado um mês em que conclui meu último dia em Hebron, resolvi contar
uma história pessoal em primeira pessoa. Anteriormente, em nenhum momento nesse
blog, utilizei a primeira pessoa, preferindo dar relatos impessoais de uma
situação mais abrangente, escrevendo muito mais sobre números, estatísticas e
dados sem nenhuma face. Tinha a intenção de descrever a situação como um todo,
o contexto de todas as inúmeras tragédias individuais. Não queria fazer desse blog
uma coleção de anedotas. Entretanto, tive que me render ao fato de que sempre a nossa vida, constituída por experiências pessoais, tende a trazer muito mais
a marca dessas experiências, do que dados abstratos. Obviamente, por mais que
tenhamos como valor a vida humana de modo geral, não criamos verdadeiros laços
sentimentais e emocionais com números abstratos e estatísticas, pois afinal de
conta, somos todos indivíduos, não seres oniscientes. Talvez de modo cínico
como na frase de Stalin "uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é
uma estatística", mas também de outro modo, reconhecendo a realidade
humana limitada, que inevitavelmente cria conexões, preferências. No alvorecer
da humanidade, o horizonte de cada ser humano estava limitado a comunidade a
seu redor, da qual poderia ter laços pessoais com todos seus membros. Assim o é
de modo geral com as comunidades humanas isoladas de hoje. O que apenas difere
esses grupos das sociedades modernas é a consciência de uma humanidade mais
ampla, de uma realidade muito mais além da experiência pessoal, da qual
sabemos, mas não a vivemos totalmente. Portanto, nossas emoções e sentimentos,
por mais que se identifique com realidades maiores e distantes, permanecem
ancoradas num existência individual, ainda que virtual. Tudo depende de como
incorporamos seletivamente o mundo a nossa volta ao nosso ser. Atrela-se mais
facilmente ao ser aquilo ao qual os laços são mais profundos, constituídos por
uma vivência. A experiência pessoal, entretanto, é algo com capacidade de
sintetizar todos esses elementos, conscientes e inconscientes, racionais e
emocionais. Ela tem o poder de uma só vez tornar-se parte do nosso ser. É a contingência,
esse ininterrupto e sempre singular acontecer, que constituí a unicidade de
cada uma de nossas vidas. Desse modo, relato abaixo algo que fez parte da
minha.
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O antigo mercado (souq) de Hebron |
Era um domingo, dia 24 de Julho, e meu grupo estava planejando visitar
uma família que vive na Casbah, o centro histórico de Hebron, em frente ao
assentamento de Avraham Avinu e que por isso sofre abusos tanto de colonos
quanto dos soldados que os protegem. Quando estavamos para sair, recebemos um
telefonema, dizendo que havia soldados na Casbah, isolando uma rua e impedindo
a passagem aos transeuntes. Saímos então com certa pressa e pouco tempo depois
chegamos ao local, talvez vinte ou no máximo trinta minutos após tudo ter
começado. Passamos pela praça em frente à Bab al-Baladia, que fica em frente ao
assentamento de Beit Romano e seguimos para dentro, pela rua al-Haram (rua do
Santuário). Há uma pequena praça nessa rua e ao lado esquerdo de que vem em
direção a Mesquita Ibrahim (o Santuário dos Patriarcas) e então vimos um
pequeno aglomerado voltados para uma estreita rua que sobe para a área
residência da Casbah. Ali encontramos observando quatro soldados
israelenses que estavam bloqueando o caminho alguns membros da TIPH
(Temporary International Presence in Hebron), uma presença internacional de
status diplomático criada pelos tratados de Oslo para monitorar a situação
dessa cidade. Fomos informados por eles que por volta de quinze soldados
israelenses ali tinham chegado aproximadamente meia hora antes. Apenas quatro
estavam barrando a passagem por aquela rua, estando os outros dentro da casa,
revistando os cômodos, provavelmente.
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Crianças palestinas sendo impedidas de passar pelos soldados israelenses que bloqueavam a rua |
Ao ver que toda movimentação por aquela estava sendo barrada pelos
soldados ali presentes, mesmo para mulheres e crianças, resolvi dar a volta e
checar o outro lado. Para fazer toda a volta era necessário voltar para entrada
do souq, vários metros atrás, ou seguir até encontrar outro acesso a área
residencial da Casabah. Após encontrar um desses acessos, tive que passar por
vários caminhos labirínticos. Demorei alguns minutos para encontrar o outro
lado da rua que havia visto estar interditada. Ao chegar ao outro lado vi
apenas um soldado bloqueando o caminho, poucos metros adiante onde estavam os
outros quatro soldados. Voltei então, para onde estavam o maior número de
soldados, dispensando meus outros colegas para visitar a família que o
aguardava não muito longe dali. Poucos minutos depois, vários soldados saíram
da casa e rumaram para dentro da área residencial. Eram pelo menos dez, sendo
que um carregava uma escada de aço dobrável nas costas. Ao total, eram quinze
soldados subindo aquela rua estreita. Eu os acompanhei juntamente com alguns
membros da TIPH. Após subir um pouco, onde havia uma bifurcação, vi os soldados
voltando pela mesma rua em que pouco tempo atrás havia subido. Dessa vez pude
ver dois homens palestinos sendo levados por eles, mas sem estar algemados ou
vendados, como é de costume.
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Soldados israelenses levando um dos dois homens palestinos com eles, enquanto membros da TIPH os observam |
Os soldados apressaram o passo descendo aquela rua e seguindo para
dentro do souq, virando na direção da entrada da Casbah. Atravessaram o souq caminhando
em fila rapidamente, sem muitos problemas, já que naquele domingo não havia
quase movimento na rua al-Haram, embora domingo seja o início dos dias úteis da
semana para muçulmanos e judeus. Segui os soldados a certa distância por
todo caminho de volta para Bab al-Baladia, literalmente a "porta da
cidade", por onde os soldados costumam a adentrar a Casbah em grande
número e para onde costumam levar palestinos detidos antes de serem levados a
delegacia israelense local (no assentamento de Givat Ha'avot) ou para alguma
prisão. Nesse local estão localizadas o assentamento de Beit Romano, a yeshiva (escola religiosa) dos
colonos e uma rua que dá acesso a rua Shuhada, na qual os palestinos estão
proibidos de andar desde do ano de 2000. Por ser uma rua de acesso a rua
Shuhada e também uma rua que passa em frente a Beit Romano, uma cancela fecha o
acesso veicular e um portão o acesso a pedestres. Uma pequena torre adjacente
ao portão serve de ponto de vigília dos soldados. Além dessa torre, em frente
ao assentamento, acima de algumas lojas de palestinos que estão fechadas por
ordem militar de Israel, há um dos vários postos militares israelenses na
cidade. Chegando ali, os soldados fizeram como usualmente fazem e passaram pela
lateral da cancela e abriram o portão atrás dela. Na rua atrás da portão,
algemaram os dois homens e vedaram seus olhos.
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Um dos dois homens palestinos sendo vedado |
Voltei, então, para o local onde tudo havia começado e comecei a
perguntar aos vendedores locais quem eram as duas pessoas que os soldados
haviam levado. Disseram-me o nome completo dos dois indivíduos e desse pai, um
homem de meia-idade que possui uma barraquinha de sucos ali perto, onde serve
sucos frescos de laranja, cenoura e romã. Decidi ir para junto de meus colegas
que ainda estavam fazendo uma visita a família que vive em frente ao
assentamento de Avraham Avinu. Estava com eles um dos contatos locais que
estava traduzindo para eles. Terminando a visita, chamei meus colegas e o
contato local, que nos ajudaria na comunicação, para ir conversar com a família
que teve a casa adentrada pelos soldados. Chegamos até lá e conversamos com o
pai daqueles dois homens que vi serem algemados e vedados, que nos convidou
para entrar. Ele estava pasmo, sem saber o que tinha acontecido. Disse-nos que,
inicialmente, viu os soldados passarem em sua frente enquanto estava em sua
barraca de sucos, mas não imaginava que iria, para sua casa. Quando percebeu
que isso era o que tinha acontecido, foi para sua casa, mas foi proibido de
adentrá-la pelos soldados, que também pediram para verificar sua identidade e o
revistaram.
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O vendedor de sucos sendo revistado após ser impedido de voltar para sua casa, onde os soldados haviam entrado |
Sem ser informado do que estava acontecendo, o senhor de meia-idade
esperou até que os soldados saíssem, para sua surpresa, com seus dois filhos.
Quando adentrou sua casa, foi logo checar os cômodos de seus filhos e netos,
que haviam sido revirados pelos soldados. Não foi dada nenhuma explicação para
ele ou para os outros membros da casa a razão de tudo aquilo. Apenas entraram
sem pedir licença, revistaram aquele cômodo por uma hora e saírem levando os
homens adultos daquela casa, um dos quais residia no quarto revistado com sua
mulher e filhos. Perguntamos se por acaso algo parecido havia acontecido antes
ou se seus filhos pertenciam a algum partido (o que quer dizer, a algum partido
banido, como o Hamas). O senhor respondeu que nenhum dos seus filhos pertencia
a algum partido político e que não tinha idéia do porque que eles estariam
sendo procurados pelos soldados. Adentrei o modesto cômodo e vi a maioria das
gavetas semi-abertas, objetos espalhados pelo chão, muitos outros jogados em
cima da cama, colchões e tapetes revirados e amontoados em um pequeno espaço.
Não havia visto os soldados carregarem ou levaram nada diferente em suas mãos,
e não nos foi informado se algo havia sido levado após a prolongada
revista.
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Cama sobre a qual os soldados haviam jogados alguns objetos durante a revista |
Então, para surpresa de todos, os dois filhos do senhor com que conversávamos
retornaram a casa em menos de uma hora. Finalmente, pudemos esclarecer o que
havia ocorrido. Prontamente lhes foi perguntado o motivo de tudo aquilo. Responderam
que haviam sido levados para prestar alguns depoimentos na delegacia de Givat
Ha'avot, devido a um "incidente" que havia acontecido no dia
anterior. Explicaram-nos que naquele dia (um sábado), como de costume, os
colonos israelenses de Hebron fizeram seu tour de uma hora pela Casbah,
seguindo por dentro da área residencial, onde circula pouca gente, normalmente
apenas os residentes locais. Passaram aquela vez pela rua abaixo de sua casa, ou
seja, a mesma que estava sendo bloqueada pelos soldados que os levaram e onde
está a entrada para aquela casa. O motivo pelo qual haviam tido sua casa revistada
e sido levados para interrogamento, era que, enquanto os colonos e soldados
passavam por debaixo da casa durante o tour, algumas coisas pequeninhas caíram
(ou foram atiradas) sobre eles. Tratava-se de sementes de frutas que as
crianças, filhas de um dos palestinos detido, comiam na janela voltada para
rua, enquanto o tour passava abaixo. Em resumo, a razão de 15 soldados terem de fato
invadido uma casa sem nenhum aviso e bloqueado uma rua por uma hora, levando
dois palestinos adultos para interrogatório, algemando-os e vendando-os para
isso, era que crianças deixaram cair sementes em soldados e colonos. Agradecido
por tudo aquilo, o pai daquela infortunada família nos levou a sua barraquinha e serviu gratuitamente
para mim e para meus colegas sucos de frutas fresco, para retribuir a atenção
que tínhamos dado-lhe. Surpreendi-me ao encontrar tanta generosidade de alguém
que tinha acabado de passar por tal situação. O olhar doce e o sorriso daquele
simples vendedor de suco jamais sairão da minha memória, pois neles vi
humanidade mesmo diante das mais insólitas e inaceitáveis situações.
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A rua al-Haram, na cidade antiga de Hebron |