terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

20 anos de um massacre


“Uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística” diz a sentença atribuída a Stalin. Um massacre parece ser um meio termo entre a “tragédia” e a “estatística”, assim como alguns morticínios que vitimam grupos específicos em um período determinado ou são cometido de maneira “inaceitável”. Eles costumam ganhar uma dimensão na memória social distinta das incontáveis mortes que se produzem dentro das sociedades por inúmeras razões. Milhões podem morrer de fome ou de outras mazelas sociais, mas homicídios intencionais em massa tem normalmente uma data, ou período, que o marca, assim como um ou mais grupos específicos, assim como um ou mais autores.  O massacre cometido contra palestinos em oração na Mesquita Ibrahimi no ano de 1994 pelo colono judeu israelense Baruch Goldstein, médico originário dos Estados Unidos, não é nem de longe o único morticínio decorrente da situação na Palestina/Israel, muito menos o maior. Entretanto, as consequências para o grupo das vítimas e do vitimador é o que o torna particular dentro do contexto palestino-israelense.

Passados 20 anos do massacre, a condição dos palestinos vivendo na área sob controle israelense em Hebron degradou a ponto de torná-la em grande medida uma “cidade fantasma”. Essa definição é particularmente apropriada para as áreas ao redor dos assentamentos judaicos, a cidade antiga e a vizinhança de Tel Rumeida. A rua Shuhada, antes a via arterial de Hebron jaz praticamente deserta, exceto pelas poucas centenas de colonos, soldados e alguns poucos turistas que por ela transitam diariamente. O nome da rua, literalmente “dos mártires” (Sahria‘ ash-Shuhada’), parece apropriado para ao que está mais associada a ela há duas décadas: seu fechamento em resposta ao morticínio de 29 palestinos durante a oração em uma sexta feira de Ramadã. Após o massacre cometido nesse dia, as autoridades israelenses colocaram a população palestina sob toque de recolher e dividiram a Mesquita Ibrahimi em duas partes: uma para muçulmanos e outras para judeus. A rua Shuhada foi interditada para veículos palestinos e centenas de lojas palestinas foram ali fechadas, seladas com barras de metal, sem que fosse possível sequer remover as mercadorias dali. A ação foi racionalizada pelas forças israelenses como uma “medida preventiva” contra “possíveis retaliações” contra a população de colonos no meio da cidade palestina.

Para os colonos, a dupla tragédia dos palestinos lhes trouxe uma rua exclusiva (de início parcialmente, hoje totalmente) e nenhuma medida efetiva contra os membros da organização da qual Baruch Goldstein fazia parte (a “Liga de Defesa Judaica” e sua versão israelense, o “Kach”), apesar de ser considerada uma organização terrorista. Seus líderes continuam livres e pichações com a assinatura JDL ou Kach aparecem em várias pichações com mensagens de ódio, como “Morte aos árabes” ou “árabes para câmeras de gás”. Escolas religiosas ali continuam a passar a mesma mensagem extremista que leva a desumanização dos vizinhos árabes dos colonos. O autor do massacre na Mesquita Ibrahimi continua sendo reverenciado e sua tumba tornou-se um centro de peregrinação para radicais religiosos, especialmente no dia de Purim, feriado judaico e também o dia escolhido para realizar o massacre na mesquita (além de ser uma sexta feira de Ramadã). Segundo a tradição, esse feriado comemora o sucesso de uma artimanha por parte de um judeu chamado Mordechai e sua sobrinha Esther que impediu uma tentativa de extermínio do povo judaico. Na interpretação dos colonos, foi exatamente isso que Baruch Goldstein fez ao matar 29 palestinos indefesos no momento de prostração da reza e ferir mais de 100, inclusive com lesões permanentes. Na justificativa dos colonos, os “árabes” planejavam massacrar os judeus de Hebron como em 1929 (quando uma turba atacou a antiga comunidade judaica da cidade, matando 67 e levando a evacuação dos sobreviventes, que em sua maioria protegidos por vizinhos palestinos) e o médico americano-israelense, num nobre gesto de sacrifício, impediu esse “plano” de se concretizar.

De fato, na perspectiva dos colonos, há muito o que celebrar das decorrências do massacre. Poucos anos depois, durante o processo de Oslo, a cidade foi dividida em duas áreas: H1, sob controle da autoridade palestina, e H2, sob controle militar israelense. Apesar de maior (80% do perímetro urbano), H1 carece do centro histórico e também tradicional centro comercial da cidade, que fica em H2, área que abarca todos os assentamentos urbanos até as imediações dos assentamentos maiores (Kiryat Arba e Harsina) fora de Hebron propriamente. Essa área foi estabelecida nos protocolos de Hebron de 1997 para proteção exclusiva dos colonos de quatro enclaves no coração de vizinhanças palestinas: Beit Hadassah, Avraham Avinu, Beit Romano e Admot Yishai (ou assentamento de Tel Rumeida). Centenas de soldados (até 1.500) são destacados para defender uma população de 600 a 700 colonos fanáticos, que desejam livrar toda Hebron da maior parte possível de seus habitantes árabes palestinos. Mais de 100 barreiras e postos de controle dividem as áreas onde palestinos circulam das áreas exclusivas, ou quase inteiramente exclusivas, para os colonos. Um sistema de vigilância com guaritas sob casas de palestinos, bases militares sob colinas em vizinhanças palestinas e mais de 100 câmeras de segurança guardam dia e noite a população dos assentamentos. Não o bastante, uma série de medidas foram ainda são impostas a população palestina em H2 que os privam de seus direitos humanos mais básicos.

Desde 25 de fevereiro de 1994, mais de 1.800 lojas palestinas em H2 foram fechadas, ao redor de um terço diretamente por ordens militares, as outras pelas restrições a movimentação e as dificuldades econômicas para os palestinos da área, que sofrem com uma taxa de desemprego de mais de 60% (que há poucos anos era de 80%). Quase metade das casas palestinas estão desabitadas: algumas transformadas em zonas militares exclusivas, outras tomadas por colonos ou simplesmente inacessíveis para seus donos. Para os que tentam trabalhar, estudar, fazer compras, ou seja, viver uma vida “normal”, a realidade da ocupação militar se faz presente como dificilmente é visto em qualquer outro lugar na Cisjordânia. Para ir à escola, crianças passam por posto de controle com detectores de metal. Suas mochilas são muitas vezes revistadas por soldados carregando metralhadoras e que não falam sua língua. Em alguns pontos, confrontos são frequentes, com a resposta das forças de segurança israelense sendo bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, mesmo em áreas de escolas lotadas de crianças. Para os habitantes de muitas áreas de H2, o acesso veicular é inexistente, mesmo para ambulâncias para atender emergências (apenas a Cruz Vermelha Internacional tem permissão, que sempre é demorada, quando não é negada). Tarefas dos dia a dia podem tornar-se feitos. Carregar facas é proibido aos palestinos, apesar dos colonos poderem carregar metralhadoras M16 consigo. Não o bastante, a violência, tanto física quanto verbal desses colonos é uma realidade cotidiana. Raramente qualquer ação de um colono contra um palestino leva a uma punição (menos de 10% dos casos levados à corte), enquanto palestinos tem uma taxa de condenação de 99,7% dentro do sistema judiciário militar israelense. A impunidade também se estende a ações de soldados contra a população palestina (menos de 6% dos casos de agressão levados à corte levaram a alguma penalização). Por conta dessa situação, o menos 15 mil palestinos deixaram H2 desde 1994, algumas estimativas chegando a 30 mil.

É desse modo exposto acima que o massacre que completa 20 anos se difere de tantos outros morticínios na pungente história da Palestina e Israel: ele continua vivo, não apenas como uma cicatriz que não cura, mas como uma ferida aberta que piora e se abre mais a cada ano, a cada dia em que se vive a atmosfera opressiva de um sistema de segregação que traz a mente lembranças de uma instituição de outro lugar, mas cuja a definição parece tão própria para a realidade atual de Hebron, particularmente desde as últimas duas décadas, isto é, Apartheid. E tanto quanto esse defunto sistema na África do Sul, a realidade atual de Hebron é insustentável e incompatível com qualquer critério de direitos humanos e dignidade. É por um lado irônico que o destino de Hebron tenha se direcionado ainda mais para o Apartheid no mesmo ano em que esse encontrava seu fim em seu berço sul-africano. Por outro, para qualquer um que entenda a humanidade como igual e sem distinções raciais, só pode ser considerado trágico que algo semelhante ao Apartheid ainda possa existir nos dias de hoje e sem que haja prospectos significativos de mudanças locais. O mundo fora da chamada “Terra Santa” parece se conscientizar cada ano mais da situação na Palestina, apesar da recrudescência de ideais fascistas dentro da alta cúpula do governo israelense e de uma Cisjordânia cada vez mais sufocada por assentamentos em expansão e uma Faixa de Gaza famélica pelo sítio. Porém, perseveram os palestinos e vivem em desafio cotidiano a tantas formas de opressão: à ocupação, à discriminação, à repressão, ao Apartheid, ao massacre cotidiano do corpo e da mente.



 
Acesso à Rua Shuhada em Hebron, proibido para Palestinos