“Uma morte é uma
tragédia, um milhão de mortes é uma estatística” diz a sentença atribuída a
Stalin. Um massacre parece ser um meio termo entre a “tragédia” e a “estatística”,
assim como alguns morticínios que vitimam grupos específicos em um período
determinado ou são cometido de maneira “inaceitável”. Eles costumam ganhar uma
dimensão na memória social distinta das incontáveis mortes que se produzem
dentro das sociedades por inúmeras razões. Milhões podem morrer de fome ou de outras
mazelas sociais, mas homicídios intencionais em massa tem normalmente uma data,
ou período, que o marca, assim como um ou mais grupos específicos, assim como
um ou mais autores. O massacre cometido contra
palestinos em oração na Mesquita Ibrahimi no ano de 1994 pelo colono judeu
israelense Baruch Goldstein, médico originário dos Estados Unidos, não é nem de
longe o único morticínio decorrente da situação na Palestina/Israel, muito
menos o maior. Entretanto, as consequências para o grupo das vítimas e do
vitimador é o que o torna particular dentro do contexto palestino-israelense.
Passados 20 anos do
massacre, a condição dos palestinos vivendo na área sob controle israelense em
Hebron degradou a ponto de torná-la em grande medida uma “cidade fantasma”. Essa definição é
particularmente apropriada para as áreas ao redor dos assentamentos judaicos, a
cidade antiga e a vizinhança de Tel Rumeida. A rua Shuhada, antes a via
arterial de Hebron jaz praticamente deserta, exceto pelas poucas centenas de
colonos, soldados e alguns poucos turistas que por ela transitam diariamente. O
nome da rua, literalmente “dos mártires” (Sahria‘ ash-Shuhada’), parece
apropriado para ao que está mais associada a ela há duas décadas: seu
fechamento em resposta ao morticínio de 29 palestinos durante a oração em uma
sexta feira de Ramadã. Após o massacre cometido nesse dia, as autoridades
israelenses colocaram a população palestina sob toque de recolher e dividiram a
Mesquita Ibrahimi em duas partes: uma para muçulmanos e outras para judeus. A
rua Shuhada foi interditada para veículos palestinos e centenas de lojas
palestinas foram ali fechadas, seladas com barras de metal, sem que fosse
possível sequer remover as mercadorias dali. A ação foi racionalizada pelas
forças israelenses como uma “medida preventiva” contra “possíveis retaliações”
contra a população de colonos no meio da cidade palestina.
Para os colonos, a
dupla tragédia dos palestinos lhes trouxe uma rua exclusiva (de início
parcialmente, hoje totalmente) e nenhuma medida efetiva contra os membros da
organização da qual Baruch Goldstein fazia parte (a “Liga de Defesa Judaica” e
sua versão israelense, o “Kach”), apesar de ser considerada uma organização
terrorista. Seus líderes continuam livres e pichações com a assinatura JDL ou
Kach aparecem em várias pichações com mensagens de ódio, como “Morte aos árabes”
ou “árabes para câmeras de gás”. Escolas religiosas ali continuam a passar a
mesma mensagem extremista que leva a desumanização dos vizinhos árabes dos
colonos. O autor do massacre na Mesquita Ibrahimi continua sendo reverenciado e
sua tumba tornou-se um centro de peregrinação para radicais religiosos,
especialmente no dia de Purim, feriado judaico e também o dia escolhido para realizar o massacre na mesquita (além de ser uma sexta feira de Ramadã). Segundo a tradição, esse feriado
comemora o sucesso de uma artimanha por parte de um judeu chamado Mordechai e
sua sobrinha Esther que impediu uma tentativa de extermínio do povo judaico. Na
interpretação dos colonos, foi exatamente isso que Baruch Goldstein fez ao
matar 29 palestinos indefesos no momento de prostração da reza e ferir mais de
100, inclusive com lesões permanentes. Na justificativa dos colonos, os “árabes”
planejavam massacrar os judeus de Hebron como em 1929 (quando uma turba atacou
a antiga comunidade judaica da cidade, matando 67 e levando a evacuação dos sobreviventes,
que em sua maioria protegidos por vizinhos palestinos) e o médico
americano-israelense, num nobre gesto de sacrifício, impediu esse “plano” de se
concretizar.
De fato, na perspectiva
dos colonos, há muito o que celebrar das decorrências do massacre. Poucos anos
depois, durante o processo de Oslo, a cidade foi dividida em duas áreas: H1,
sob controle da autoridade palestina, e H2, sob controle militar israelense.
Apesar de maior (80% do perímetro urbano), H1 carece do centro histórico e também
tradicional centro comercial da cidade, que fica em H2, área que abarca todos
os assentamentos urbanos até as imediações dos assentamentos maiores (Kiryat
Arba e Harsina) fora de Hebron propriamente. Essa área foi estabelecida nos
protocolos de Hebron de 1997 para proteção exclusiva dos colonos de quatro
enclaves no coração de vizinhanças palestinas: Beit Hadassah, Avraham Avinu,
Beit Romano e Admot Yishai (ou assentamento de Tel Rumeida). Centenas de
soldados (até 1.500) são destacados para defender uma população de 600 a 700
colonos fanáticos, que desejam livrar toda Hebron da maior parte possível de
seus habitantes árabes palestinos. Mais de 100 barreiras e postos de controle
dividem as áreas onde palestinos circulam das áreas exclusivas, ou quase
inteiramente exclusivas, para os colonos. Um sistema de vigilância com guaritas
sob casas de palestinos, bases militares sob colinas em vizinhanças palestinas
e mais de 100 câmeras de segurança guardam dia e noite a população dos assentamentos.
Não o bastante, uma série de medidas foram ainda são impostas a população
palestina em H2 que os privam de seus direitos humanos mais básicos.
Desde 25 de fevereiro
de 1994, mais de 1.800 lojas palestinas em H2 foram fechadas, ao redor de um
terço diretamente por ordens militares, as outras pelas restrições a
movimentação e as dificuldades econômicas para os palestinos da área, que
sofrem com uma taxa de desemprego de mais de 60% (que há poucos anos era de
80%). Quase metade das casas palestinas estão desabitadas: algumas
transformadas em zonas militares exclusivas, outras tomadas por colonos ou
simplesmente inacessíveis para seus donos. Para os que tentam trabalhar,
estudar, fazer compras, ou seja, viver uma vida “normal”, a realidade da
ocupação militar se faz presente como dificilmente é visto em qualquer outro
lugar na Cisjordânia. Para ir à escola, crianças passam por posto de controle
com detectores de metal. Suas mochilas são muitas vezes revistadas por soldados
carregando metralhadoras e que não falam sua língua. Em alguns pontos,
confrontos são frequentes, com a resposta das forças de segurança israelense
sendo bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, mesmo em áreas de escolas lotadas
de crianças. Para os habitantes de muitas áreas de H2, o acesso veicular é
inexistente, mesmo para ambulâncias para atender emergências (apenas a Cruz
Vermelha Internacional tem permissão, que sempre é demorada, quando não é
negada). Tarefas dos dia a dia podem tornar-se feitos. Carregar facas é
proibido aos palestinos, apesar dos colonos poderem carregar metralhadoras M16
consigo. Não o bastante, a violência, tanto física quanto verbal desses colonos
é uma realidade cotidiana. Raramente qualquer ação de um colono contra um
palestino leva a uma punição (menos de 10% dos casos levados à corte), enquanto
palestinos tem uma taxa de condenação de 99,7% dentro do sistema judiciário
militar israelense. A impunidade também se estende a ações de soldados contra a
população palestina (menos de 6% dos casos de agressão levados à corte levaram
a alguma penalização). Por conta dessa situação, o menos 15 mil palestinos
deixaram H2 desde 1994, algumas estimativas chegando a 30 mil.
É desse modo exposto
acima que o massacre que completa 20 anos se difere de tantos outros
morticínios na pungente história da Palestina e Israel: ele continua vivo, não
apenas como uma cicatriz que não cura, mas como uma ferida aberta que piora e
se abre mais a cada ano, a cada dia em que se vive a atmosfera opressiva de um
sistema de segregação que traz a mente lembranças de uma instituição de outro
lugar, mas cuja a definição parece tão própria para a realidade atual de Hebron,
particularmente desde as últimas duas décadas, isto é, Apartheid. E tanto
quanto esse defunto sistema na África do Sul, a realidade atual de Hebron é
insustentável e incompatível com qualquer critério de direitos humanos e
dignidade. É por um lado irônico que o destino de Hebron tenha se direcionado
ainda mais para o Apartheid no mesmo ano em que esse encontrava seu fim em seu
berço sul-africano. Por outro, para qualquer um que entenda a humanidade como
igual e sem distinções raciais, só pode ser considerado trágico que algo
semelhante ao Apartheid ainda possa existir nos dias de hoje e sem que haja
prospectos significativos de mudanças locais. O mundo fora da chamada “Terra
Santa” parece se conscientizar cada ano mais da situação na Palestina, apesar
da recrudescência de ideais fascistas dentro da alta cúpula do governo israelense
e de uma Cisjordânia cada vez mais sufocada por assentamentos em expansão e uma
Faixa de Gaza famélica pelo sítio. Porém, perseveram os palestinos e vivem em
desafio cotidiano a tantas formas de opressão: à ocupação, à discriminação, à
repressão, ao Apartheid, ao massacre cotidiano do corpo e da mente.