Há uma ano atrás, no dia 16 de agosto de 2011, visitei junto ao Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel o moshav (comunidade cooperativa agrícola) de Netiv HaAsara ao sul do Israel e apenas 400 metros da fronteira com a Faixa de Gaza. Fomos conhecer uma representante da ONG formada por pessoas comuns de Gaza e da região de Sderot chamada Other Voice, que promove a paz entre palestinos e israelenses. Ela nos contou sobre a situação na sua vila e na região de Sderot, sobre os mísseis qassam, as vítimas. Também nos contou sobre a iniciativa de trazer alguns palestinos de Gaza para se reunir com eles em Israel. Conseguiram uma autorização para uma dezena de pessoas atravessar o bloqueio. Dois deles concordaram em aparecer na televisão israelense, o que acabou por trazer perseguição a eles após seu retorno, tendo um deles até deixado a Faixa de Gaza. Foi nos apresentado os vários abrigos, os pontos de ônibus com abrigos, um parquinho infantil com brinquedos que servem como abrigos. Não deixava de estar claro que era uma perspectiva israelense, por mais que se esforçasse por promover uma visão de mútua compreensão e divergir do senso comum israelense. Mas a visita não se limitaria a sua fala.
O moshav de Netiv HaAsara, ao sul de Israel |
A experiência mais simbólica dessa visita, entretanto, foi ir até um local alto apenas metros de distância da fronteira com Gaza. Ali podemos vislumbrar o que já foi descrito como "a maior prisão a céu aberto do mundo". Passamos pelo muro que divide a fronteira norte da Faixa de Gaza com o Israel, um muro em quase nada diferente do muro na Cisjordânia, exceto pelo fato de respeitar as fronteiras internacionais e ter torres equipadas com metralhadoras de alto calibre. A maior parte da fronteira é na verdade constituída por cercas eletrificadas e equipadas com câmeras de segurança. A proximidade com o pequeno moshav de Netiv HaAsara justificaria, segundo a visão das autoridades israelenses, a necessidade dos muros para evitar franco-atiradores palestinos atirando contra civis israelenses. Subimos em uma duna, e dali podemos vislumbrar Gaza à distância. Prédios apareceram a uma longa distância do muro, atrás de dunas, mas também da área de exclusão, da qual os palestinos não podem se aproximar. São em tese uma distância de 500 metros da barreira, mas na prática acaba chegando a uma distância de dois quilômetros, áreas onde existem casas, apartamentos, etc. Nessa área de risco, muitas pessoas tem terras, as quais tem dificuldade de cultivar devido ao temor de tiros de metralhadoras israelenses ou mesmo de artilharia de tanques que vigiam a fronteira.
Muro que separa Israel do norte da Faixa de Gaza |
Entretanto, nada disso podia ser claramente percebido. Apenas um conjunto embaralhado de prédios à distância, duas pequenas cidades, Beit Lahiya e Beit Hanun, paradas, sem vida, nenhum ser humano à vista. O zoom da máquina fotográfica podia ao menos aproximar o suficiente para ver as cores dos prédios, o verde das árvores, as janelas das casas e dos prédios. Ainda assim, é uma imagem impessoal, desprovida de qualquer elemento que revele a existência de uma vida cotidiana, humana como qualquer outra. Somando-se as torres de vigilância, o muro, todo o aparato de segurança, não é de se estranhar o estranhamento e falta de empatia dos israelenses da região de Sderot pelos habitantes de Gaza. Claro, a esse fator soma-se os mísseis qassam. Entretanto, isso é desenvolvimento relativamente recente do conflito. A barreira existe desde 1994 e a saída da Faixa de Gaza para seus habitantes é um problema desde 1948. Os mísseis qassam, com toda sensação de temor que causa entre os habitantes do sul de Israel, matou até hoje menos de 25 cidadãos de Israel. Apenas em uma operação na Faixa de Gaza das forças aéreas de Israel no início de 2011, 26 palestinos foram mortos. Isso sem contar a ofensiva inclemente do exército israelense que matou aproximadamente 1.400 pessoas, em sua maioria civis. Desses civis, uma parte significativa eram crianças (as estimativas ficam ao redor de 400).
Norte de Gaza |
Ninguém pode perceber daquela duna de areia em Netiv HaAsara, nem de qualquer ponto da fronteira no lado israelense, o sofrimento cotidiano dos palestinos que habitam uma região minúscula, apenas 360 quilômetros quadrados, sob um cerco que já dura aproximadamente cinco anos. Além das dificuldades inerentes a um bloqueio econômico, a Faixa de Gaza possuí uma das maiores densidades populacionais da face da terra. De acordo com o Escritório de Coordenação Assuntos Humanitários da ONU, mais de 90% da água do aqueduto de Gaza é considerado impróprio para o consumo. O desemprego alcança 34% e entre a jovens chega a 50%. Quase metade de todos os habitantes de Gaza sofrem de insegurança alimentar e por volta de 80% recebem ajuda humanitária. Mais de um terço da área agrícola de Gaza tem seu acesso impossibilitado devido ao bloqueio israelense, assim como 85% das águas utilizadas anteriormente para pesca. Apagões costumam ser frequentes e chegam durar 12 horas por dia. Apenas um caminhão de comida sai de Gaza diariamente, 3% da média de exportação na primeira metade de 2007. O produto interno bruto de Gaza em 2011 foi 17% menor do que era em 2005. Desde que o bloqueio foi instaurado, trinta e sete israelense morreram de ataques vindos de Gaza, 40% civis, enquanto aproximadamente 2.300 palestinos morreram ali desde o mesmo período, 27% dos quais mulheres e crianças. Aproximadamente dois terços morreram na já mencionada ofensiva de 20 dias ao final de 2008 e início de 2009.
Gaza atrás do muro |
Entretanto, nada numa terra assolada por conflito é simples. Poucos dias depois de ter visitado o sul de Israel, na mesma semana, um ataque terrorista foi realizado na estrada para Eilat, cidade banhada pelo Mar Vermelho. No mesmo dia do ataque, as forças aéreas israelenses atacando o quartel dos supostos perpetradores em Gaza, matando um número semelhante dos que morreram no ataque em Israel. Me lembro das palavras da representante dizendo como se sentia atormentada quando mísseis eram lançados de Gaza e as sirenes tocavam avisando todos ao redor a se refugiarem. Ao final, ela também disse que sentia coração apertar quando via helicópteros e aviões israelenses lançar mísseis em Gaza, temendo que alguém que conhecesse também pudesse ser atingido. Essa segunda descrição não foi tão longa e detalhada quanto a primeira. Mas por mais que haja sofrimentos em ambos os lados, não podemos deturpar os fatos ao ponto de ignorar a enorme desproporção do conflito e dos afetados pelo mesmo. Miko Peled, ativista israelense que perdeu sua sobrinha para um atentado de um homem-bomba, foi ao local onde um míssil qassam havia caído num Jardim de Infância de um kibbutz no sul de Israel. Crianças ficaram em choque, algumas foram feridas, outras poucas hospitalizadas pelo míssil que caiu enquanto elas ali brincavam. O buraco deixado pelo míssil qassam era de o tamanho de uma bola de futebol grande. Nesse momento, Miko pensou no efeito de uma bomba de um tonelada, como as lançadas por Israel nas áreas urbanas densamente povoadas da Faixa de Gaza. Lembrou que a cratera deixada por uma bomba desse poder explosivo é de o tamanho de um quarteirão. Crianças nas proximidades do local de impacto não ficam aranhadas, não em estado de choque, elas são dizimadas, são queimadas, são sufocadas pela fumaça e enterradas pelos escombros. Entretanto, nada disso pode ser visto ou sentido a apenas uma curta distância, do outro lado da barreira que poupa a população israelense do vislumbre dos horrores cometidos em nome de sua segurança.
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