quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Colinas do Sul de Hebron


 Às margens dos desertos da Judéia e do Negev, na área mais austral da Cisjordânia, estão as chamadas colinas do sul de Hebron, uma região árida habitada por fellaheen (camponeses), beduínos (pastores) e colonos judeus ideológicos. Ali os problemas geradas pela pobreza e escassez de água são agravados pela presença de assentamentos que se apossam das poucas terras férteis restantes, fragmentam o território, limitam severamente o movimento por esse, assim como o acesso a serviços básicos como água e eletricidade para população local. Os colonos, por outro lado, possuem rodovias próprias sem barreiras ou outras limitações, água encanada e eletricidade, tendo também ampla liberdade de construir mais casas e desenvolver a infra-estrutura dos assentamentos, o que é praticamente impossível para as vilas palestinas ao redor. Qualquer nova construção realizada por palestinos deve ter a aprovação prévia das autoridades militares israelenses, por via de regra jamais concedida, ou ser submetida a demolição, destino que pode ser adiado, mas dificilmente evitado. Não bastando essas condições opressivas, os palestinos das colinas do sul de Hebron estão sujeitos a constantes abusos, ameaças e agressões dos colonos e dos soldados que os protegem. E os perpetradores raramente são processados e punidos nessa terra sem lei, nessa espécie de "faroeste oriental".

Mapa das Colinas do Sul de Hebron


 A paisagem muda rapidamente descendo da cidade de Hebron para a cidade de Yatta ao sul, embora a mudança possa ser sutil para um forasteiro. De um verde esparso misturado a coloração do capim baixo e das rochas passa-se para uma onde amarelo da areia começa predominar, ainda que as oliveiras pontilhem parte da paisagem. Nas ruas, pequenos "tratores pipas" carregam água para a cima e para baixo, por todos "tentáculos" da cidade-vila de Yatta, que, embora possuam mais de 40 mil habitantes, é predominantemente rural. Assim é também seus vários distritos e vilas ao redor. A sudeste, descendo algumas dezenas de metros colina abaixo, o deserto começa a avançar sobre a terra cultivável, numa área dominada por arbustos que serve de alimento para os rebanhos de ovelha e cabra dos povoados pastoris. Até tempos recentes, esses povoados pastoris eram nômades ou semi-nômades, mas o processo de modernização, a limitação do território a partir da criação do estado de Israel em 1948 e, por fim, a ocupação e 1967, acabou forçando essas populações a se assentarem. O contraste entre o modo de vida dos felaheen (camponeses) e dos beduínos (pastores semi-nômades) nem sempre é claro, principalmente nas franjas das terras cultiváveis, onde esses modos de vida se sobrepõem. Exemplo dessa complexa realidade é a vila de At-Tuwani, que fica próxima ao povoado pastoril de Tuba. Entretanto, não se trata apenas de uma bucólica paisagem agro-pastoril, pois ali a ocupação também está presente em uma de suas mais comuns manifestações: um assentamento israelense (Havat Ma'on) incrustado entre as duas vilas.

Pastor de Tuba correndo em direção oposta ao assentamento de Havat Ma'on após ouvir o barulho de um carro

 Uma colina entre At-Tuwani e Tuba foi adquirida pelo fundo nacional judaico na década de 1970, onde, como de costume, foram plantados vários pinheiros. Vários anos depois, colonos israelenses de motivação ideológica ergueram ali o assentamento de Havat Ma'on, que funciona como uma "cunha" entre as várias vilas da área, aumentando a distância entre elas. Muitos povoados são demasiado exíguos para terem sua própria escola, sendo necessário ir para outro maior para obter educação. Assim ocorre com as crianças de Tuba, cuja escola mais próxima está em At-Tuwani. O trajeto utilizado pelas crianças do povoado de Tuba para ir à escola na vila de At-Tuwani passa pelo assentamento de Havat Ma'on. Nesse caminho, elas estão sujeitas a todo tipo de abuso dos colonos israelenses desse assentamento, que muitas vezes as atacam ou perseguem usando mascarando seus rostos. As crianças passam por esse trajeto escoltadas por um veículo militar israelenses, que na maioria das vezes não completa o trajeto ou sequer aparece, deixando-as indefesas. Duas organizações bravamente monitoram essa situação: CPT (Christian Peacemaker Team - "Time de Pacificadores Cristãos")  e Operation Dove (Operazione Columba - "Operação Pomba") para que as crianças não sofram abusos e agressões, monitorando o andamento da situação e procurando assim assegurar que o exército israelense faça sua parte e provenha a escolta para elas.

Estrada que atravessa o assentamento de Havat Ma'on utilizada por crianças de Tuba a caminho da escola em At-Tuwani


Outros povoados na área sofrem com a violência e expropriação gerada pelos assentamentos e pelo fanatismo de seus colonos. A sudeste de Havat Ma'on, por exemplo, encontra-se o assentamento de Suseya, nome copiado do povoado palestino vizinho, Susya. Esse último originalmente se encontrava num local onde hoje está uma parte de Suseya, nas cavernas que foram declaradas como patrimônio histórico dos tempos bíblicos pelo governo israelense na década de 1980 e por  esse motivo seus habitantes originais foram expulsos dali. Hoje, as antigas moradias das famílias de Susya são uma atração turística "histórica" administrada pelos colonos de Suseya, cujas as residências ficam em outra parte, ao sul da atual aldeia de Susya, ficando essa cercada por aquela. Não parou por aí os abusos a essa pequena comunidade palestina, pois continua sujeita às constantes ameaças, provocações, dano à propriedade e agressão física causada pelos elementos mais fanáticos desse assentamento. Entretanto, as pessoas de Susya não desistiram e permanecem perseverantemente em suas terras, não aceitando ceder o mínimo de espaço ao assentamento, que por causa disso continua divido em duas secções: uma norte (onde está o "museu") e outra ao sul (onde encontram-se as residências).

"Museu"do assentamento de Suseya sobre as antigas cavernas de Susya


Há pouquíssimos quilômetros da linha verde, que divide a Cisjordânia de Israel conforme as fronteiras do armistício de 1949, encontram-se algumas aldeias pastoris e entre elas Khirbet Bir al 'Id e Jinbe. Ambas estão próximas ao assentamento de Mezadot Yehuda e, mais ainda, ao posto de Nof Nesher, o também conhecido como a "fazenda de Lúcifer". Ali mora um colono extremista chamado Yakov, um africanêr (branco sul-africano) que após o fim do apartheid na África que se converteu ao judaísmo e imigrou para Israel (não é necessário explicitar o que isso indica implicitamente à respeito de Israel). Esse homem aterroriza principalmente o isolado povoado de Jinbe, que fica há menos de dois quilômetros colina abaixo de Khirbet Bir Al 'Id, 700 metros para baixo. Para chegar até esse local, é preciso caminhar não mais do que trinta minutos ou contornar as colinas por duas horas, já que não existem estradas para lá. Yakov adentrou a vila várias vezes, às vezes vindo de carro 4 x 4 ou a cavalo, caminhando livremente por entre as tendas e os currais. Mais de uma vez atirou contra o povoado, matando certa vez duas ovelhas. Frequentemente, é escoltado por mais ou menos cinco soldados israelenses, que chegam em seu próprio jipe militar. A maioria desses eventos foi registrado por um câmara da ONG israelense B'tselem, que distribui cameras e vídeo por quase todos os locais na Cisjordânia onde há violações de direitos humanos. As câmeras servem a dupla função de desestimular essas violações e fornecer provas delas perante um tribunal para que os responsáveis possam ser devidamente processados e punidos. Entretanto, apesar de todas as evidências, a impunidade dos colonos continua a ser a tendência predominante.

Vista de Khirbet Bir Al 'Id para Jinbe e para o deserto do Negev em Israel

  Khirbet Bir Al 'Id talvez seja um dos melhores exemplos da ausência do regime das leis nos territórios ocupados. Após um longo processo legal levado a cabo pela ONG Rabbis for Human Rights (Rabinos pelos direitos humanos) para reverter uma decisão de demolição da casa construída por um palestino de Khirbet Bir Al 'Id sem aprovação das autoridades militares israelenses. Embora sua casa tenha sido construída dentro da área do povoado, ainda assim esse se encontra na chamada Área C, categoria criada após os tratados de Oslo que estabelece que qualquer construção a ser realizada nas áreas sobre essa categoria (quase 2/3 da Cisjordânia) necessitam de aprovação prévia das já mencionadas autoridades. Entretanto, existe a possibilidade de recorrer a sentença, processo extremamente complexo e difícil para maioria dos palestinos, normalmente sendo realizado por alguma ONG que fornece os recursos ou assistência legal. Alguns advogados israelenses também aceitam casos de palestinos gratuitamente, porém são pouquíssimos, muito menos do que o número de casos. Por fim, houve uma decisão da Suprema Corte de Justiça de Israel abortando a demolição, porém essa não foi respeitada. No mesmo dia que os bulldozer chegaram e destruíram a casa, chegou também a ordem escrita requisitando seu cancelamento poucas horas depois. Nenhuma indenização foi oferecida pela violação de uma ordem judicial e o fato consumado assim continuou. Não obstante, a demolição de casa não fez o espírito dos palestinos de Khirbet Bir Al 'Id desmoronar, assim como de tantos outros palestinos que passaram pela mesma experiência, que apesar das agruras da Ocupação continuam resistindo perseverantes, vivendo e existindo em suas terras.


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