domingo, 14 de agosto de 2011

O velho e o ônibus




Nos arredores da cidade de Hebron (Al-Khalil), a nordeste do centro histórico dessa mesma cidade, está o Wadi Al-Ghrous, um vale localizado entre as duas colinas onde estão instaladas dois assentamentos israelenses: Qiryat Arba (ao sul) e Givat Harsina (ao norte). O primeiro foi estabelecido em 1968 e o segundo no início da década de 1980 por colonos removidos do Sinai após o tratado de paz entre Israel e o Egito. Algumas famílias palestinas permanecem vivendo ali, resistindo à pressão criada pelos assentamentos circundantes, que se manifesta normalmente através do confisco de terras e através da violência dos colonos. Em meio a esse conturbado ambiente, encontra-se a história de perseverança de um velho e seu ônibus.

Abd al-Hasib embaixo de sua árvore (Foto: M Engstrom, EAPPI)


Sozinho, agarrando-se ao pouco que resta de sua terra, vive passando a maior parte do tempo embaixo de uma árvore um idoso de 80 anos chamado Abd Al-Hasib Atta Zaloum. Durante toda sua longa vida, testemunhou inúmeros acontecimentos-chave do conflito árabe-israelense, como as guerras de 1948 e 1967. Também testemunhou a formação e expansão dos assentamentos israelenses a sua volta, já a partir do ano de 1968. Desde o princípio, esses assentamentos se constituíram tomando terras palestinas sejam privadas ou estatais (ou assim declaradas pelo Estado ocupante, Israel), às vezes vagarosamente, às vezes abruptamente. Isso é realizado normalmente através de um engenhoso sistema que utiliza medidas de segurança que inviabilizam o acesso à terra e leis otomanas de confisco de terras não cultivadas durante três anos. As terras pertencentes a Abd Al-Hasib não foram imunes a esse processo de desapropriação.

Localizadas adjacente ao assentamento de Qiryat Arba, cuja população atual gira em torno de oito mil habitantes, suas terras também sofreram do mesmo processo de desapossamento a quais tantos outros palestinos estão sujeitos. De seus originais 21 dunums de terras, restam-lhe apenas 4 dunums (1 dunum = 1.000 m²). Como também em tantos outros casos, o motivo declarado pelas autoridades israelenses foi a proteção dos assentamentos através da criação de área de isolamento que provesse uma espécie de faixa de segurança para as instalações desse, como a escola para as crianças dos colonos que fica próxima as terras de Abd Al-Hasib.

Escola dos colonos de Qiryat Arba


Essas medidas de segurança foram impostas às custas da propriedade privada de um idoso inofensivo, sem que lhe fosse dado qualquer compensação pelas perdas, o que deveria ser a prática em qualquer sociedade sob o estado de direito. Ao contrário, os próprios assentamentos que provocaram essa destituição forçada é que estão em flagrante violação com as leis internacionais, de acordo com a Quarta Convenção de Genebra, segundo a qual é ilegal a transferência de uma população para territórios ocupados pela força ocupante. Mais de cem assentamentos israelenses foram erguidos desde 1967 na Cisjordânia, para os quais foram construídos em meio a um território alheio rodovias, sistemas de canalização de água, redes de luz e eletricidade, etc; aos quais a população local, os palestinos, tem pouco ou nenhum acesso.

A partir do ano de 1994, durante o processo de Oslo, foi estabelecido que a Cisjordânia seria divida em Áreas A, B e C. As áreas consideras A estariam  dali em diante sob controle total da Autoridade Nacional Palestina, também uma criação dos mesmos acordos, pelo menos em tese. Já as áreas consideradas C (quase 2/3 da Cisjordânia) permaneceriam sob controle total israelense, sendo as Áreas B um misto das duas: controle civil palestino e militar israelense. Do mesmo modo que tantas outras nas imediações de assentamentos, as terras de Abd Al-Hasib caíram dentro da Área C. Isso significou que qualquer construção realizada dali em diante necessitaria da aprovação das autoridade militares israelenses. Como regra geral, é praticamente impossível para um palestino conseguir uma permissão para construir nessa área, não restando outra opção a não ser fazê-lo ilegalmente. Ordens de demolição são emitidas pouco tempo depois do término das construções e, após o esgotamento de todos os recursos possíveis, aos quais a grande maioria mal sequer tem acesso, vem a demolição de fato.

Assim foi com a casa que Abd Al-Hasib construiu em suas terras em fins da década de 1990, demolida pouco tempo depois de sua construção, no ano de 2000. A retirada forçada de sua casa pelos soldados e policiais israelenses resultou em algumas seqüelas, principalmente em seu braço direito, quebrado por aqueles enquanto resistia à remoção forçada. Seu filho buscou então uma solução para seu pai que insistia e ainda insiste em permanecer vivendo em suas terras até o dia que morrer. Comprou para ele um ônibus quebrado de uma companhia de Beit Sahur por 400 shekels para que pudesse continuar ali. Não sendo uma construção, o ônibus não está sob a ameaça de demolição pelas autoridades israelenses. Já há 10 anos, vive o idoso Abd Al-Hasib em seu ônibus, cerca de 20 metros de sua antiga casa demolida.

Destroços da antiga casa de Abd Al-Hasib demolida no ano de 2000 (Foto: M Engstrom, EAPPI)


As condições dentro dessa residência, o ônibus, são consideravelmente austeras. Não há água encanada, nem banheiro. Há apenas alguns colchões, uma televisão, um rádio e um fogão a gás simplíssimo. Algumas janelas do ônibus estão quebradas ou faltando, o que durante o inverno deve tornar as condições ali difíceis de serem suportadas. Adjacente ao ônibus encontra-se a árvore onde o idoso passa a maior parte do tempo. A primeira vista é possível pensar que alguém vivendo nessas condições sinta-se miserável e infeliz, mas não é o caso de Abd Al-Hasib:

“Eu tenho tudo aqui: pão, água. Eu prefiro viver aqui do que em um hotel cinco estrelas.” diz ele apontando para o que mantém próximo ao alcance de suas mãos.


Interior do ônibus (Foto: M Engstrom, EAPPI)

O insistente idoso permanece firme em sua terra, temendo que, caso a deixe, ela seja incorporada ao assentamento adjacente de Qiryat Arba. Os colonos dali costumavam a importuná-lo regularmente até a uma cerca ser erguida oito anos atrás. Entretanto, a mesma lhe barrou o acesso a maior parte de suas terras, restando apenas menos de um quinto do que tinha anteriormente. Ainda assim, esse exíguo lote de terra é visado por aqueles que desejam usá-lo para expansão do assentamento.

Alguns anos atrás um advogado veio até ele interessado comprar suas terras e oferecendo um altíssimo valor por elas. Inicialmente foi oferecido em torno de 30.000 dinares jordanianos por cada dunum de terra (um dinar jordaniano costuma valer entre 2 a 2,5 reais). Suspeitando algo estranho, Abd Al-Hasib continuou negociando e conseguiu aumentar o valor para 100 mil dinares por dunum. Finalmente ele disse que não venderia a terra, já que sabia que tal preço só poderia ser pago por colonos ideológicos interessados na expansão do assentamento próximo. Então, disse que toda sua terra junta não valia 10 mil dinares jordanianos e expulsou o advogado dali.

Inicialmente, sua mulher lhe fazia companhia morando com ele no ônibus. Porém, há cerca de oito meses teve que se retirar dali por causa de problemas de saúde que praticamente a imobilizaram. Ela vive agora na casa de seu filho, a poucas centenas de metros dali. Agora resta apenas o velho solitário, sentado debaixo de sua árvore ou dormindo dentro de seu ônibus. Entretanto, ele declara não se sentir nenhum um pouco aborrecido: 

“Eu sou como um rei aqui na minha terra. Eu tenho uma TV e posso ouvir no rádio Umm Kulthum (famosa cantora egípcia). O rei da Jordânia não poderia vir aqui e viver aqui, pois precisaria de seus guarda-costas. Eu tenho só um protetor: Deus”.

Abd Al-Hasib Atta Zaloum (Foto: M Engstrom, EAPPI)

Resoluto em terminar seus dias sobre o chão que lhe legitimamente pertence, o idoso Abd Al-Hasib Atta Zaloum resiste firmemente ao que é apenas um exemplo do lento avanço do processo de desapontamento que ocorre atualmente por toda Cisjordânia. Ao contrário do habitualmente veiculado pela mídia, não é violência a principal arma da maioria dos palestinos em sua longa luta contra quase 45 anos de ocupação, mas sim a paciente persistência como aquela apresentada nas linhas acima de um velho e seu ônibus.

O ônibus e atrás as cercas que circundam o assentamento (Foto: M Engstrom, EAPPI) 




Um comentário:

  1. Maravilhoso texto e história,filho.
    Muito obrigado por este belissimo presente de Dia dos Pais.
    Persistir em crenças e valores de forma pacifica é o que nos dá sentimentos de humanidade.
    Jauro em 14/8/2011

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